sábado, 18 de abril de 2009

Marcolino e o sofá-cama

Reproduzo aqui, com a devida autorização do autor, um texto que mexeu demais comigo.  Não pelo fato de ser dedicado a mim, mas pelo fato de eu estar, para o autor, no mesmo nível de consideração do Dr. Ivan Capelatto.

Noadir Marques da Silva Jr, o autor do texto abaixo, é Defensor Público do Estado de São Paulo nas horas vagas. Na realidade ele é poeta, escritor, compositor e, na minha concepção, exerce sua melhor vocação como marido da Gisele e pai da Julia e Beatriz.

Ah, detalhe (somente ele entenderá essa expressão...), é meu amigo e tem ocupado o lugar do Julio na minha vida (leia o texto "Hoje é dia das crianças" neste blog).

Segue o texto:

«Para ficar claro que não devo me exaltar...
foi-me dado conviver com um espinho na carne...
que me esbofeteia todos os dias...
três vezes pedi ao Senhor que o tirasse de mim...
Ele me disse: ?a minha Graça é o bastante...
?o Meu poder se aperfeiçoa na fraqueza...?
(Paulo, em II Coríntios 12, paráfrase)

(Para Eduardo Baez e Ivan Capellato)



Marcolino veio subindo a rua com sua pasta. Saíra de uma reunião de vendas pesadíssima em São Paulo. Fechara mais um negócio. Pequeno, mas fechara. O dia, para sua surpresa, estava quase no fim. O calor matava. O ar condicionado que lá dentro do escritório estava gelado demais, fazia o calor aqui fora parecer ainda mais intenso. Tudo o que queria era uma água gelada, pegar o carro no estacionamento e ir para Campinas antes do "rush".

Parou num pequeno bar e pediu uma garrafa de água com gás. Pediu uma segunda e pensou num cafezinho. Descartou: calor demais. Em um segundo, passou os olhos pelas diversas garrafas expostas na prateleira. Queria ir embora.

Logo pegou a Marginal do Tietê. Impressionantemente, o trânsito vinha calmo. Saiu de São Paulo em vinte minutos, e logo estava na estrada que o levaria para casa. Pôs um CD de John Coltrane para tocar. Afrouxou a gravata, puxou as calças até o joelho, deixando o ar condicionado refrescar os tornozelos. Tirou o sapato do pé esquerdo, e logo o pôs de volta. Recostou-se e deixou que o som choroso de «In a Sentimental Mood» penetrasse pelos ouvidos e varresse de dentro da cabeça tudo o que significava enfado.

Pensou nos filhos. Aquelas duas pequenas criaturas que tanto dependiam dele. Onde estariam agora? Certamente na escola. Lembrou-se que ficaria com eles à noite. Que havia arrumado o apartamento. Que comprara uma lasanha de quatro queijos congelada. Que pegara o filme original de «A Fantástica Fábrica de Chocolate», com o genial Gene Wilder, muito melhor que aquele lixo computadorizado com o insuportável Johnny Depp. A música fez o efeito esperado. Metade da estrada e já estava relaxado. Agradeceu por isso, pelos filhos, pelo excelente relacionamento com eles.

Chegou na cidade quando escurecia. Parou o carro na porta do prédio de Rosemary e fez sua já peculiar oração pedindo sabedoria e paciência.

Os pequenos já estavam no saguão de entrada, com suas mochilinhas repletas de coisinhas, e seus sorrisos repletos de planos e de coisas para contar. Era um bom pai, sabia disso. Não fora dantes, mas agora era um bom pai.

Nos poucos segundos entre parar o carro e ir até o saguão contou várias vezes até dez. Manteria a calma, sabia disso. Não haveria discussões estéreis. Era um bom pai, sabia disso. Era um bom pai. Um bom pai. Um pai.
Rosemary veio logo atrás das crianças. Cumprimentou-o friamente e fez questão de chegar perto. Quis sentir-lhe o hálito. Ver se não havia bebido. Questionou-se até quando ela duvidaria que ele havia mudado. Que a bebida deixara de ser um problema. Já estava «limpo» há três anos. Depois de tantas mostras, como ela podia duvidar? Achou melhor não dizer palavra. Amanhã cedo traria os pequenos de volta. Bendita seja a guarda compartilhada. Pôs as crianças no banco de trás e saiu.

Chegou no pequeno apartamento. Olhou os cadernos, as lições de casa. Tirou as roupinhas das mochilas e pôs no armário. Montou o sofá-cama onde dormiria. Tinha uma parte do tecido que o revestia puído. Era puído, mas era o mais em conta, de acordo com o que restava do salário. Era puído, e por isso mesmo os filhos não dormiriam ali. Como de costume, os dois pequenos dormiriam no quarto. Comeram a lasanha. Frutas de sobremesa; tem que comer; sem conversa, tem que comer. Assistiram juntos ao filme. O mais velho não gostou: não havia os efeitos especiais. O mais novo gostou mais deste que vira abraçado com o pai. Hora de dormir e os pequenos vão para a cama. Orações, uma conversinha sobre o dia e o soninho. Boa noite.

Marcolino estava só, agora, com seus pensamentos.

Pensou em Rosemary. No divórcio que se iniciou conturbado, mas que ao final foi amigável. Nos primeiros tempos em que a solteirice foi um alívio. Poderia beber quando e o quanto quisesse. No amigo que um dia o encontrou caído na porta de um bar. Nas visitas que começou a lhe fazer. No pequeno grupo que se reunia na casa do amigo. Na mensagem que finalmente entendera e aceitara. Jesus pagando seu preço e aceitando-o como é. Sem reservas. Sem limites. Nos anos de caminhada. Estava limpo.

Agora, aqui, sozinho, a dor de haver perdido o tempo passado. De ter perdido um casamento. Rosemary agüentou o mais que pôde. Dois empregos perdidos por conta do copo. Um ano sem trabalhar. Sucessivos tratamentos sem resultado. O patrimônio se foi primeiro. Depois, os sonhos. Depois, o amor. Depois, o casamento.

Lembrou-se mais uma vez das noites sem fim. De acordar e não saber onde estava. Das mulheres que desfilaram por sua solteirice. De algo que chamavam de «fazer amor», mas que não tinha sentimentos. Não tinha abraços. Não tinha nomes. Não tinha amor, mas só fazer. Da bebida. Da bebida.

Era um alcoólico. Sabia disso. Não havia caminhos de volta. Seria um alcoólico para o resto de sua vida. Pensou se isso passava pela cabeça de seu grupo de estudo bíblico.

Às vezes, acordava suado com um pesadelo corrente. Rosemary aos gritos, entrando na sala da casa onde o grupo se reunia. «Bêbado! Bêbado!». A vergonha de ter que explicar que se controlava, há anos que se controlava, mas que aquilo não saía de diante, de trás, de baixo e de cima de si. Que pedira por um milagre. E que esse milagre não viera.

Como dói! Foi cobrir as crianças no quarto.

Voltou à sala, e pensou em Paulo, o apóstolo, não o amigo. Do que lera a seu respeito na Bíblia uns dias antes. Que havia um espinho, um mensageiro do diabo para esbofeteá-lo. Que pedira por três vezes para se ver livre. «Pai, tira de mim...». Depois não pediu mais pois o que Deus faz por ele se aperfeiçoa no espinho. No fim, ele chama o espinho de graça.

Já tinha ouvido em algum lugar que teólogos querem crer que o espinho era um problema na vista. Que isso fica muito óbvio quando se lê a narrativa sobre os irmãos que se pudessem dariam seus próprios olhos por ele. Custava a Marcolino crer. Paulo lá no fundo se mostrava um sujeito amargo, rancoroso. Um sujeito que quando ficava sozinho remoía dentro de si alguma coisa de seu passado. Como Marcolino, agora.

Podia ser uma provação mais íntima. Algo de que se envergonharia em público e que, em dado tempo, percebeu ser mais Graça que desgraça. Percebeu que só fazia mal a si. E que servia apenas para desmontar seu imenso ego. Apenas para fazê-lo não confiar cegamente em sua cultura ou em sua sólida formação religiosa. Ou pior: para fazê-lo não ser arrogante com relação às inúmeras almas que arrebanhava ao longo de seu novo Caminho.

É. É isso. Tinha um sonho. Um sonho de aquele passado não fizesse mais sentido. E que um dia, Rosemary estivesse ali sentada, com ele, ouvindo uma bela mensagem e comungando de seu novo coração de carne. Não seria mais sua esposa. Casara de novo com um bom sujeito. Mas seria sua amiga. Sua irmã.

Pensou consigo que Deus é Deus. Com a consciência tranqüila, sem ter problemas com a própria deidade. Até há pouco, nem sabia que esta palavra existe. Deus é Deus sem ter melindres ou dramas.

Deus não tem chulé, meias velhas ou sofá-cama puído na sua sala. Não tem contas vencidas a pagar. Não tem dramas de consciência. E não precisa sublimar isso com sentimentos mais ou menos escusos.

Pensou que ele, Marcolino, é quem precisa disso. E Paulo. E Ricardo. E Eduardo. E Renato.

Não sabia o que precisamente Paulo chamava de «espinho». Mas pensou naquele momento que Deus não brinca com a história das pessoas. Que educa, faz crescer. E se já pagou as contas, não se importa mais com o mau-cheiro quando tira os sapatos, ou com os furos nas meias um pouco velhas, ou com os do sofá-cama. Aqueles problemas que só as pessoas sabem que têm.

Pensou que nós é que erramos. Primeiro, em achar que isso -diante dele- é um problema. Naquele dia ele dirá: «do que você está falando, Marcolino?». E segundo, por acharmos que não estamos sujeitos aos furos de nossos sofás.

Pensou que era uma pessoa qualquer, que a fé não torna ninguém um super-homem. A queda estava nos planos dele. Os filhos dormindo no quarto, o emprego, o grupo de estudo, agora, só querem dizer que Deus faz, apesar da história. A Graça basta.

Amadurecer não é fácil. Passava exatamente por isso, agora: dor do crescimento. Por isso o pensamento sobre as inconfessáveis frieiras da alma. Todo mundo é lobo por dentro. Todo mundo tem um sofá-cama de que se envergonhar.

Tinha o seu milagre, suspirou. Virou para o lado. Acordou só no dia seguinte.

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